
AVISO: por favor, mas assim um grande favor mesmo leia na íntegra antes de querer começar uma flamewar nos comentários, ambos os lados. O interesse do artigo é mostrar que nada é 8 ou 80, preto no branco. Existem muitos números e tons de cinza no meio.
Recentemente veio à tona um projeto de lei (537/2013) de São Paulo, do vereador Laércio Benko (PHS), para a proibição da produção e comercialização do foie gras na cidade. No dia 03/10 aconteceu a primeira votação simbólica e o projeto foi aprovado.
Seguindo passos de algumas cidades americanas: Chicago houve a proibição por dois anos (2006-2008), mas o conselho da cidade voltou atrás na decisão. Em New York aconteceu movimentação para tal, mas não acabou indo para frente. Entretanto, no estado da Califórnia a proibição passou e virou lei com multa de $1000 para o infrator.
Para virar lei de verdade ainda é necessário mais duas audiências públicas, uma segunda votação em plenário para depois ser sancionada pelo atual prefeito, Fernando Haddad.
Não sou legislador, mas a justificativa da lei é… deixo para vocês lerem: PL 0537/2013 – Justificativa. Sem citações de trabalhos e pesquisas, oi?
Apenas parafraseio um trecho: “(…)Considerando que o foie gras não traz nenhum beneficio a saúde humana e (…)” Dentro dessa visão, praticamente tudo industrializado poderia ser proibido.
Foie quem?
Foie gras é um termo francês para “fígado gordo” ou “fígado de ganso gordo” é um ingrediente, de certo modo, recorrente na dita alta gastronomia. A grande diferença para o fígado normal (o miúdo básico): é absurdamente gordo, tanto que fica amarelado de tanta gordura. Além de crescer várias vezes.
Para chegar nesse ponto de gordura, o método tradicional é a Gavage: alimentação forçadas das aves. Um funil é colocado na boca da ave e através dele é colocado grãos, geralmente milho. O animal querendo ou não. Com essa comida a mais, o fígado aumenta devido ao acúmulo de gordura.
A tradição na produção não é novo e nem culpa dos franceses. Segundo os relatos históricos, é uma prática encontrada no Egito antigo durante a época dos faraós e propagada pelos impérios subsequentes.
Em algumas referência é atrelado ao povo judeu, por restrições religiosas não podem misturar leite e derivados com carne, e nem fazer o consumo de porco (banha). Então, a gordura de aves era usada. Primariamente, a gordura de galinha/frango (schmaltz) e depois o foie gras. E como já sabiam fazer, continuaram após a queda dos faraós e dos romanos dos quais foram escravos.
Crueldade? Faca de vários gumes
Crueldade, por crueldade… o que é crueldade?
(cru.el.da.de)
sf.
1. Qualidade ou característica de cruel; ATROCIDADE; MALDADE; PERVERSIDADE; CRUDELIDADE. [+ com, em : crueldade com os prisioneiros: crueldade no tratamento. antôn.: Antôn.: bondade, humanidade.]
2. Ação cruel, bárbara, inclemente; BARBARIDADE; CRUEZA; IMPIEDADE; MALEVOLÊNCIA. [ antôn.: Antôn.: beneficência, benevolência, caridade. ]
3. Rigor, inclemência: a crueldade do inverno. [ antôn.: Antôn.: amenidade, brandura. ]
via Aulete
Os animais criados num sistema industrial não vivem e morrem nada felizes. Aliás, nenhum ser vivo.
Já morrei em estados diferentes e nas viagens que fiz, era comum ver entreposto de gado com os animais esperando o transporte. Ficar sob um sol escaldante de rodovia, de clima seco, sem nenhuma sombra por perto sabe-se lá por quantas horas ou dias não me parece nada confortável.
As aves para produção de ovos, vivem confinadas numa gaiola a vida inteira com um espaço minúsculo de locomoção. Apenas para produzir os ovos que nós precisamos para fazer aquela omelete ou bolo de chocolate. Feliz? Creio que não.
Vitela ou vitelo é novilho novo abatido entre duas a seis semanas de idade, e temos também o vitelão que pode chegar até 12 meses antes do abate.
E o nosso frango de cada dia vive, no máximo, 50 dias. Se for o galeto não chega a 30. Isso que nem vamos entrar na polêmica dos tais hormônios (Spoiler: não, não é usado hormônios no frango. É proibido pela Normativa 17/2004 do MAPA). Transporte: vida louca.
Tanto a vitela quanto o frango são praticamente bebês. Como não chegam a maturidade sexual, não é possível dizer que eram animais maduros. Vidas interrompidas.
Porco? Leitão é castrado para que tenha aumento de peso maior em menor tempo. Para que depois possamos usar o seu delicioso bacon, banha e sua pele pururucada ou o velho torresminho. Dúvido alguém (principalmente ozamigos homens) ler o procedimento da castração sem sentir uma dor visceral lá você sabe onde.
Isso que apenas falei de animais mais próximos da gente. Falta a imensidão dos mares e rios com sua diversidade incrível. Só porque o senhor peixe não emite som e é pouco expressivo não significa que não agoniza quando é retirado da água sem conseguir respirar.
Você ajuda a manter o site e os vídeos no ar e temos recompensas bem bacanas, vem saber como!
Fica mais fácil julgar quando a gente esquece que a cadeia de produção em larga escala é bem maior, complexa e difícil do que gostaríamos. Não importa, alimentar-se de qualquer ser vivo sempre terá a dualidade: um precisa morrer para que o outro continue a viver.
O manejo das criações atual é o melhor? Provavelmente não. E pensando em larga escala (leia-se lado econômico) a tendência é aumentar ainda mais.
Alternativa se chama Eduardo Sousa
Desde 2008, o mundo já deveria saber que existe alternativa. O chef americano Dan Barber (Blue Hill) fez uma palestra explicando o que seria o foie gras natural. Confesso que não conhecia esta alternativa até a Kelly Stein postar o video.
Dan Barber, você pode não o conhecer, mas é um dos chef americanos mais engajados que buscam uma produção realmente sustentável e local, não apenas da boca para fora.
Na talk, Dan relatou a produção do foie gras espanhol de um pequeno produtor (Eduardo Sousa) que a família atua desde 1812: La Patería de Sousa.
Se todos os insetos da Terra desaparecessem, em 50 anos toda a vida sumiria. Se todos os humanos desaparecessem, em 50 anos todas as formas de vida prosperaria.
– Jonas Salk, médico.
Basicamente o que o senhor Eduardo faz é deixar a natureza com o papel dela. Como? Antes do inverno gansos e patos (por instinto) comem muito para conseguirem suportar as condições adversas do clima antes da migração, logo, o acúmulo natural de gordura acontece. (seção 4: Welfare Aspects of the Production of Foie Gras
in Ducks and Geese)
Sem alimentação forçada, as aves comem o que querem e quando querem. Pastam, literalmente. Apenas controlam a data de abate, antes da migração em meados de novembro e dezembro.
Indica outro detalhe da produção: é um produto sazonal, não vai ter o ano todo. A filosofia do Eduardo em relação ao foie gras é simples: um produto para comer apenas em ocasiões especiais e não o ano inteiro.
Na sequência da Kelly, chef Julien Mercier (o esposo dela) posta um video da propriedade do senhor Eduardo:
E como ninguém mais sabia disso antes? Sendo que a família opera desde sempre? Segundo Dan, Eduardo contou que chefs não merecem o produto dele. Pois chefs acabam “destruindo” o ingrediente com os pratos mirabolantes.
Claro, tudo parecer ser lindo e perfeito. Se realmente é, eu não sei. Infelizmente não conheço a produção in loco, mas saber que há alternativa já é um começo.
Se for fazer um paralelo com gado de corte, poderia ser o famoso Kobe beef com a sua carne bem entremeada de gordura. Tudo bem que no caso da vaca, ela engorda por causa do sedentarismo.
Futuro?
Não que eu seja um grande consumidor de foie gras, longe disso. Para ser bem sincero, devo ter aprovado duas vezes. A primeira, dentro de uma terrine. E a segunda, o foie em si tostado… é um sabor adquirido que eu não tenho. Achei muito forte, gorduroso demais e a textura muito macia/cremosa demais para mim. Mas eu entendo o apelo do consumo. Não faz e nunca fez parte da minha alimentação ou da minha vida.
O que me causa preocupação é o Estado querer decidir o que eu posso ou não comer. Influenciar na minha livre escolha, isso sim é um problema. Não falo como profissional da área, mas como consumidor. Pode dar margem para muitos outros aspectos do nosso cotidiano.
Conheço muita gente que não come foie gras e carne em geral por causa do bad karma, não gostou do gosto, pena dos bichos ou por mera falta de interesse mesmo. Mas uma coisa em comum todas tem: foi por escolha.
Afinal, já possuem dedos sobre a flor de sal, semente de papoula e queijos crus. Para virar um Soylent Green ou a gororoba branca balanceada de Matrix é um pulo.
E caso exista uma proibição que tenha, pelo menos, justificativas mais concretas e específicas. Na essência, poderia ser proibido qualquer coisa… essa margem é o problema.
Atualização: Novembro/2016.
A lei previamente aprovada pelo prefeito Fernando Haddad (2015) foi revogada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em fevereiro (2016).
Atualização: Junho/2015.
O prefeito do período (2015) Fernando Haddad sancionou o projeto de lei. Pela Lei 16222/2015 (ainda não disponível no site da Camara) fica proibido a comercialização do produto além do uso de pele de animais criados exclusivamente para a extração do couro. E caso o estabelecimento seja flagrado com foie gras receberá multa de R$5mil.
Oi, Vitor!
Obrigada pelo link.
O projeto está inacabado, tanto que será realizada uma audiência pública ainda com os setores interessados da sociedade (http://www.youtube.com/watch?v=xfEggPRjmDQ).
De fato, o Estado não deve intervir nas relações privadas, a não ser em situações excepcionais. Mas uma forma legítima de intervir, seria desestimulando, através de impostos, os setores que produzem e comercializam o foie gras e QUE SE UTILIZAM DA TÉCNICA DA GAVAGE (tal como fazem com o tabaco, bebidas alcoólicas e produtos importados que afetem a economia interna). Para isso, existem os tributos extrafiscais.
Outra saída seria estimular as empresas, por meio de incentivos fiscais, a produzirem o foie gras através de métodos menos sacrificantes (como o do Eduardo Sousa).
Não tenho dúvida de que o projeto sofrerá profundas modificações após as discussões pertinentes.
Acho que a questão também é técnica: ao invés de proibir a FORMA como é produzida (e, por via de consequência, a comercialização de foie gras oriundos dessa forma), ele proibiu genericamente a produção e comercialização…
Adorei o assunto!
Abraços,
Vitor, Parabéns pelo texto!
Sempre existem as duas faces da moeda, devemos conhecê-las ao máximo para julgar.
O fato da produção/consumo de animais pouco usuais costuma gerar polêmica. Mas como você bem apresentou os bovinos, suínos, aves e peixes são submetidos a engorda forçada, com exceção do funil na garganta, o manejo é semelhante.
Só para registrar além do foie gras (que por acaso não me atrai), o fígado destes animais é fontes do amado (em homeopatia) Oscilococcinum…como viver sem?! #sófarmacêuticoentende
até, Luciana
Victor,
Muito boa essa discussão. Agora, não encontrei o projeto de lei aludido. Claro que me estimulei em pesquisar no próprio sítio da Câmara Municipal de São Paulo para ler o que, de fato, o projeto propõe (isso porque, a justificativa do PL, por si só, não dá as balizas necessárias para que eu possa me posicionar a respeito) contudo, lá informam que o texto não foi disponibilizado de forma online.
Logo, não tenho como avalizar a iniciativa, muito menos achacá-la, pois sem ler os dispositivos do projeto, seria por demais açodado.
Não sei se você tomou ciência dos termos, assim, se tiver de alguma forma conseguido o teor, peço a gentileza de compartilhar.
Muito obrigada!
Saudações cariocas,
Pode soar estranho, mas basicamente a PL não propõe, é o apenas o texto com os artigos de definição e a justificativa, ambos linkados no texto. Os mesmos textos linkados foram publicado assim no diário oficial de São Paulo no dia 14/08/13 na página 103.
Concordo com vc. Toda a cadeia de criação de animais para alimentação em grande escala é cruel. Abate de milhares de pintinhos machos, porcos que nem andam de tão gordos e galinhas com o bico derretido para que não “cisquem” a ração.
O projeto me parece arbitrário e um tanto totalitário, assim como não esconde um desejo de publicidade gratuita e uma ignorância hipócrita do autor.
Muito bom o post, viu, super instrutivo. Sabia que estava rolando uma polêmica por causa do foie gras em SP, mas não sabia direito dos detalhes. Nunca comi foie gras por opção, mas achei sensacional o trabalho do Eduardo Sousa. Claro que a gente sempre doura a pílula em vídeo institucional, mas é uma forma de produção que faz todo o sentido, fiquei muito feliz de conhecer. Quanto à polêmica, não tem nem dúvida: com funil, ou sem funil, tenho certeza que o Estado tem coisas muito mais importantes para se preocupar nesse momento do que o que eu ponho no meu prato. Ainda mais com uma desculpa esfarrapada dessa de “não trazer benefícios”. E viva o incentivo fiscal para as fábricas de industrializados, né.
Adoro seu blog, viu!
Também acho temerário o estado querer decidir o que vc pode ou não comer, como vc deve educar seu filho,etc. A minha discussão com os vegetarianos sempre foi essa, o poder da escolha,se isso vai te acarretar um karma por comer produtos oriundos da violência, é problema seu, o karma é seu. Se estão acabando com as florestas por causa do óleo de palma, não é minha culpa, vou continuar comendo meu kit kat, depois me acerto com o universo,rs. Conheci pessoas nesse mundo do yoga tão xiitas com essa questão do vegetarianismo,da natureza, do parto normal, da vida sustentável, mas que tratavam mal o garçon, não cumprimentavam o porteiro, enfim…dois pesos e duas medidas.
Eu gosto bastante desse blog e respeito bastante sua opinião, principalmente pela qualidade dos textos e a ajuda que eles oferecem (tipos de creme de leite é uma dos meus preferidos), eu sou a favor da proibição de alimentação forçada de animais, é extremamente triste ver a situação das aves em ambiente super lotado, trocar se sofrimento por algumas horas de prazer, vai totalmente contra o que eu acredito. Em contrapartida sou apreciador de queijo cru e sei das diversas restrições impostas na comercialização principalmente do mineiro, pois sou de MG e praticamente tenho de contrabandear para poder comer, embora meu exemplo não seja igual ao seu, entendo sua crítica.
Rodrigo, o Governo Federal voltou atrás dessa lei que restringia o queijo curado mineiro apenas ao estado de Minas Gerais, agora o queijo da canastra e outros curados podem ser comercializados pelo país sem problemas. agora podemos ser mais felizes comendo esse genuíno queijo brasileiro.
FONTE: http://www.turismo.mg.gov.br/noticias/1265-o-queijo-artesanal-de-minas-gerais-e-legalizado