Uma nova campanha do Burger King para promover que o seu famoso lanche Whopper não possui mais conservantes de origem artificias, portanto, ele mofa. Será que é só isso mesmo?
Não é de hoje que muitas empresas gostam de informar aos seus consumidores que estão mudando suas operações para que fiquem menos processadas. O que é sempre válido, não é mesmo?
A diferença nesse caso do Burger King é a maneira escolhida: a campanha utiliza o Whopper (o lanche super famoso da rede) que se deteriora em um período de 34 dias (leia-se: fizeram um time lapse dele mofando).
Para que a gente possa comentar sobre a campanha que tem como dizeres “Comida de verdade é mais gostosa“, é preciso de contexto.
A origem da campanha
O vídeo promocional lançados nas redes do Burger King em meados de setembro de 2020 não é novo, necessariamente. Ele faz parte de uma campanha que aconteceu na filial americana em fevereiro de 2019.
É o mesmo vídeo, apenas reeditado. Mas cortaram a parte do food styling (de deixar o lanche bonito) e traduziram o texto para o português. Até aqui, tudo normal. Não é mesmo? Quase.
Para nós, aqui no Brasil, faltou um certo contexto como já comentei. A ação, eu diria, foi super planejada e calculada.
A versão em vídeo comento sobre e explico os fatores que fazem um alimento se estragar ou não.
O lanche que não estraga
Nos Estados Unidos é super comum o boato que lanches de fast food, principalmente do McDonald’s (concorrente direto do Burger King), não estragam. No caso, não mofam.
Existem diversas teorias das conspiração sobre o porquê do lanche não mofar. Se você buscar, vai encontrar muitas pessoas com lanche tipo pet: possuem o lanche há anos sem mofar.
Por isso, eu disse que a escolha dessa produção foi super pontual e uma alfinetada ao seu concorrente. Para mostrar: Olha, o nosso estraga! Não temos conservantes.
Aqui temos duas situações em pontas opostas:
- Um diz que não mofa
- E outro diz que mofa
Mas o que ambos faltam: aquela pitada marota de Ciência e outras explicações.
Em tempo: não tenho relação ou problemas com nenhuma das empresas. Minha única aflição é com Ciência ruim ou usada de modo equivocado.
Análise do vídeo
Apesar dos vídeos (americano e brasileiro) serem o mesmo, na versão nacional optou-se por retirar o começo em que o lanche é montado. E está naquele visual que a gente chama de beauty shot.
Ou seja, o famoso imagens meramente ilustrativas que é uma ferramenta usadas por vários motivos, um deles é informar rapidamente ao consumidor o que tem no lanche. Bateu o olho e você já sabe quais os componentes dele.
O detalhe é que: para montar essas versões mais bonitas nem sempre as condições são as mesmas do restaurante no sentido de higiene e manipulação dos alimentos.
Podem ter usado os mesmos itens que vão no lanche (comumente, é assim que acontece). Mas não sabemos se na mesma quantidade e qualidade. Afinal, é para ficar bonita e, ninguém vai comer depois.
Sem falar que o lanche usado no vídeo não se parece em nada com o que é vendido nos restaurantes da rede. Isso também é outro fator para influenciar na deterioração do alimento.
Aqui no caso, pelo vídeo fica subentendido que o lanche estragou devido a ausência dos conservantes. Porém, vai mais além.
Vendo apenas o caso do vídeo, nós não sabemos:
- Quais as condições do ambiente: temperatura, umidade, luminosidade…
- Qual era o local? Uma cozinha, um estúdio, um laboratório? Era um local próprio para manipular alimentos e fazer um teste de deterioração?
- As boas práticas de manipulação foram seguidas no sentido de higiene e de cozimento? Os itens cozidos foram submetidos as temperaturas corretas?
- O lanche ficou exposto direto ao ambiente ou estava dentro de um domo fechado?
- Qual era a umidade relativa do lanche e a sua atividade de água?
- Pelo vídeo, indica que ficou totalmente mofado após 34 dias. E a versão com conservante mofa ou não nas mesmas condições?
- Foi feito alguma análise para afirmar que o lanche estragou devido a ausência dos conservantes? E caso sim, tinha uma significância com p<0,05?
Pelas artes e informações da campanha, o Whopper sem conservantes de nome estranho está apenas disponível em alguns restaurantes da rede em São Paulo.
Suponho que quando a peça foi criada lá fora, provavelmente, a equipe de marketing não conversou direito com a equipe de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Prefiro acredito nisso. Uma vez que os pontos que levantei são o básico, do básico em Ciência de Alimentos.
E acredito que o pessoal de P&D teria comentado sobre. Porém, tem aquele ditado: manda quem pode, obedece quem tem boletos para pagar.
Quando soube que a campanha entrou aqui no Brasil, entrei em contato com a assessoria com as questões que levantei aqui. Infelizmente, não me responderam em tempo hábil até a finalização do texto e vídeo. Mas estou no aguardo das respostas.
Não mofa?
Como essa questão se o lanche mofa ou não ser mais comum lá fora. Muitas pessoas também colocaram em teste para entender o porquê disso.
A conclusão básica: não mofa por ser seco demais. Ou seja, o alimento se desidratou, tem uma umidade baixa e isso influencia a atividade de água também.
O Kenji do Serious Eats colocou a prova esse boato há alguns anos atrás. Ele testou com lanches comprados e que ele fez em casa ambos não mofaram.
Outros pontos importantes: são alimentos cozidos e durante o cozimento é induzido a desidratação deles. Quem nunca fez um bife, e ele diminui de tamanho? Perdeu água durante.
Sem falar das altas temperaturas, isso diminui ainda mais a carga microbiológica que o alimento pode ter. Isso vale bastante para batata frita: você frita por imersão em óleo super quente (180°C) que praticamente deixa estéril e desidrata o tubérculo (as bolhas que você vê saindo da batata é vapor de água).
Mais um fator: onde o alimento foi mantido. Se for um local seco, sem umidade ambiente, ele se desidrata ainda mais rápido. A tendência do alimento é entrar em equilíbrio com o ambiente (principalmente, a atividade de água).
Você ajuda a manter o site e os vídeos no ar e temos recompensas bem bacanas, vem saber como!
Teor de Umidade
Umidade é uma ideia mais fácil de entender e visualizar no dia a dia. É literalmente, a quantidade de água que o alimento possui.
Para quem já fez salada de pepino estilo asiática que deixa ele descansado com sal e açúcar, ou de repolho. E depois de um tempo, tem aquela poça de água na tigela. Umidade!
Um alimento super comum também: leite. Leite em cerca de 87% de umidade. Ou seja, a cada 100g de leite, 87g é de água e 13g dos outros componentes (açúcares, gorduras, proteínas)
A quantidade de água no alimento influencia como ele vai estragar ou não. Alimentos com mais água geralmente estragaram mais rápido que um alimento seco.
Quem estraga primeiro um saco de arroz seco ou uma maçã fresca colocados na mesmas condições? Percebe?
Porém, não basta ter mais água… é preciso que esteja disponível para uso. E aqui nós entramos no conceito de Atividade de Água.
Atividade de Água (aW)
Eu acredito que poucas pessoas já ouviram falar de Atividade de Água, mas é um dado super importante e comum em diversos ramos da indústria.
É uma informação que auxilia para entender como a água se relaciona com o alimento (ou cosmético, medicamento). Tem como valor máximo 1 (que é o da própria água) e sem unidade.
Antigamente, a definição ou explicação era dada como a água livre que estava disponível para ser usada seja nas reações químicas do próprio alimento como para os microrganismos.
Porém, nos últimos anos com estudos de um cientista de alimentos chamado Theodore Labuza diz: que não tem esse conceito de água livre no alimento. A água estará ligada, porém, a intensidade dessa ligação pode ser forte ou fracamente. Quando mais fraca, mais fácil da água sair dessa ligação.
A explicação total do conceito entra em termodinâmica e fugacidade da água, mas não vamos entrar nesse ponto…
De maneira simples, quanto maior a atividade de água mais fácil do alimento apresentar crescimento microbiológico, se as condições forem favoráveis.
Essa variável sobre influência da temperatura, por isso é sempre verificada em condições constantes de temperatura e em sistema fechado.
Tem uma certa ligação com a umidade, mas não é tão direta assim. É possível termos alimentos com baixa umidade, mas com uma alta atividade de água. Ou seja, apesar de ter pouca água em si, o alimento consegue perder ela facilmente.
Um exemplo que falei no vídeo: mel. É considerado o alimento que nunca estraga (o que é verdade em partes), e não tem nenhum conservante artificial.
Mel tem cerca de 20% de umidade (máximo permitido pela legislação do MAPA) e tem um aw de 0,6 que já dificulta o crescimento de microrganismos.
Apesar de ter umidade, a interação da água com os outros componentes de do mel é intensa. Afinal, mel é basicamente sacarose e frutose (carboidratos) que gostam bastante de água.
Não é regra, mas geralmente alimentos mais úmidos, podem ter uma atividade de água maior.
Marketing do Medo
A questão um tanto quanto é o uso do marketing do medo. Ao invés de tentarem explicar e educar de maneira clara, foi feia a escolha do medo, criar o medo em torno de substâncias químicas, aqui no caso, conservantes.
Em tempo: tudo é química.
É uma tática usada em diversas áreas do consumo, vemos bastante na de alimentos e nos últimos tempos na de beleza (cosméticos e maquiagem).
Acredito que criar medo nunca é a saída. E que na grande maioria das vezes é somada a falta de conhecimento. Se a pessoa não conhece e não entende, para ter medo é mais fácil. (Vide a situação de 2020)
Esse viés pode ser visto ainda mais nas artes da campanha com o texto: ou outro nome estranho de conservante. E fique atento as palavras usadas: de origem artificial.
Para o nosso corpo, pouco importa a origem da molécula. Se foi criada em laboratório ou feita pela natureza. Caso a estrutura for a mesma (e é), a ação será igual. E hoje em dia com o avanço da biotecnologia (uso de microrganismos para produção de substâncias), foi produzida em laboratório. Mas por seres vivos, é natural ou sintética? Fica aí, a pergunta.
Novamente, mudanças para deixar menos processados e afins é sempre bem-vinda. Mas precisava criar um storytelling (leia-se: história para boi dormir) que não informa direito?
Outra questão é: se a sua preocupação é na quantidade de conservantes que um lanche de fast food tem, acredito que buraco é mais fundo. Afinal, lanches em geral assim não é algo que deveríamos consumir sempre.
Então, uma vez ou outra, por que não? Mas se consome sempre… uma revisão na sua relação a comida seria interessante, talvez.
Referências
- BARBOSA-CÁNOVAS, G.V. et al. Water Activity in Foods: Fundamentals and Applications Institute of Food Technologists Series, John Wiley & Sons, 2020.
- BRAGA, A. V. U. Caracterização de atividade de água e cinética de dessorção de água em alimentos, Unicamp, 2015.
- FENNEMA, Owen R. Food chemistry. 3rd ed. New York: Marcel Dekker, 1996.
- FIGURA, L.; TEIXEIRA, A. A. Food Physics: Physical Properties Measurement and Applications, Springer, 2007.
- GURTLER, J.B. et al. The Microbiological Safety of Low Water Activity Foods and Spices Food Microbiology and Food Safety Practical Approaches, Springer, 2014.
- RAHMAN, Rahman, M.S. Handbook of Food Preservation. Food Science and Technology, CRC Press, 1999.
- ROCKLAND, L.B. Water Activity: Theory and Applications to Food. Routledge, 2017.
- SOUZA, S. J. F. de. Estudo da atividade de água em co-produtos da indústria de sucos: sementes de maracujá, casca de laranja e cascas de manga, São José do Rio Preto, 2015.
- TROLLER, J. Water Activity and Food Food Science and Technology, Elsevier, 2012.
- LÓPEZ-ALT, J. K. The Food Lab: Here’s Why McDonald’s Burgers Don’t Rot.
- FDA. Water Activity (aw) in Foods.
- Qual a diferença entre atividade de água e umidade?
- Influência da Temperatura no Parâmetro Atividade de Água (aw)
Site maravilhoso, cheguei aqui porque estou passando um sufoco com bromato na faculdade…já favoritei!
Excelente análise Vitor, obrigada