Um quadro não muito discutido na relação de saúde e comida no Ocidente é a Intolerância ao Álcool. Às vezes, comento sobre isso no PratoFundo, principalmente nos vídeos.
Algumas pessoas ficam curiosas e espantadas quando comento que tenho isso também (sim, a gente é todo errado). Então, creio que é uma boa oportunidade para explicar realmente o quê é isso.
Vamos olhar para a Panela da Verdade: o que é Intolerância ao Álcool? No final tem o resumo Muito Longo; Não Li, como sempre.
É alergia?
Assim como a intolerância à lactose: não, não é alergia. Novamente: são situações produzidas por sistemas diferentes do corpo. Neste caso, está envolvida com o metabolismo (e eliminação) do álcool e não com o sistema imunológico do corpo como são as alergias. Podem existir pessoas alérgicas ao álcool? Pode. A chance é pequena, mas pode. Aqui não é o caso.
Combinado?
O que é Intolerância ao Álcool?
Já vamos começar uma correção: não é chamada de intolerância. O quadro é classificado como uma Deficiência de Aldeído Desidrogenase (ALDH2). Ou seja, existe algo de errado no funcionamento dessa tal Aldeído Desidrogenase 2.
Sintomas
O mais visível de todos: vermelhidão facial e corporal. Além desses:
- Dor de cabeça
- Enjoo e vômito
- Taquicardia
- Pode piorar quadro de asma
- Mal-estar generalizado
Para ilustrar melhor o cenário: imagina os sintomas clássicos da ressaca. Mas ao invés de aparecer no dia seguinte, ela acontece de imediato. Posso lhe assegurar que não é nada confortável, é bem ruim mesmo.
Pareceu mais familiar, não é mesmo? Ela é chamada na gringa de Asian Glow (em uma tradução livre: brilho asiático), mas também pode ser chamada de Vermelhidão Asiática.
Daí, você vai me perguntar: aldo-quem?
Quem é Aldeído Desidrogenase (ALDH2)?
De maneira bem simples: enzima. Logo, isso nos diz que é uma proteína. Ela age na metabolização do álcool (etanol) quando nós ingerimos seja na forma de bebida e/ou misturada em algum prato.
Este número “2” que acompanha o nome indica que existem outros tipos da enzima com a mesma função. Geralmente, quando a gente fala em enzimas, elas são um grupo que possuem funções iguais, mas podem ter diferenças na estrutura, origem e onde ficam. E neste caso a ALDH2 é a principal.
Para quem estiver interessado, o gene responsável pela instrução da enzima está localizado no cromossomo 12 (12q24.12). A sequência tem cerca de 44 kbp (quilo bases de pares) que processada resulta num fragmento com 517 aminoácidos. E depois de produzida, mora na matriz mitocondrial (leia-se: dentro da mitocôndria, uma organela que fica dentro das células).
Para entender melhor o papel dela, a gente precisa saber um pouco mais como a metabolização do álcool acontece.
Metabolismo do Álcool
Praticamente quase tudo o que consumimos precisa passa por algum tipo de transformação para ser eliminado. Com o álcool não seria diferente.
O álcool é percebido como uma substância tóxica pelo organismo, desta maneira precisa ser eliminado. Para conseguir isso, o álcool é transformado e o responsável é o fígado.
Apesar de ser um órgão simples na sua constituição, é de suma importância: ele que é o responsável pela desintoxicação do corpo. É um trabalho contínuo e constante. E não, aquele suco verde esquisito não tem essa função e nunca terá.
O processo básico acontece em duas etapas com uso de duas enzimas principais diferentes.
Na primeira, a enzima Álcool Desidrogenase (ADH) atua primeiro e transforma o álcool em Acetaldeído. Até aqui tudo bem, tudo certo. Isto é esperado. Mas… tem um detalhe importante.
Acetaldeído é mais tóxico do que álcool. Ele pertence ao grupo dos aldeídos que tem a função orgânica aldeído: formado por um centro carbonila (carbono em dupla ligação com oxigênio) e um hidrogênio. Pegou o nome da enzima? Uma substância bem conhecida desse grupo é o formol usado em preservação de peças anatômicas. Mas calma, nem todos aldeídos são ruins assim: a vanilina responsável pelo aroma de baunilha também pertence a este grupo.
Logo, acetaldeído também não pode ficar no corpo, certo?
A segunda etapa continua com: Acetaldeído sofre a ação da enzima Aldeído Desidrogenase 2 (ALDH2) e vira o radical Acetato (pensa nele como se fosse o ácido acético, o mesmo que tem no vinagre) que é bem menos tóxico na comparação e pode ser eliminado com maior facilidade com outros processos do corpo.
Estão aqui ainda comigo? Ótimo!
O que descrevi é o esperado na maioria das pessoas. Ah, sim: o passo a passo está bem simplificado, o processo usa outras substâncias (como cofatores) para ser executada. Outros caminhos metabólicos podem acontecer, principalmente na primeira etapa, em casos de excesso de álcool pode existir ação do citocromo P450 2E1 e da catalase (outra enzima) para ajudar na metabolização.
Mas claro que existem as excessões, os diferentões, não é verdade?
Deficiência de Aldeído Desidrogenase
Eu sempre digo que eu gostaria de ser mutante. Na verdade, eu sou. Só que ao invés de ganhar um poder, eu perdi.
Parte da minha ALDH2 é inativa, logo, meu corpo não consegue transformar o Acetaldeído no mesmo ritmo que ele é produzido (as outras ALDH não são tão eficazes como a tipo 2). Assim, tem o acúmulo dele no organismo e como é tóxico, os sintomas sentidos é devido a intoxicação por acetaldeído. Uma mutação no gene responsável pela ALDH2 é a causa.
Basta ter um gene mutante para apresentar este quadro, pois ele tem uma característica semi-dominante para acontecer a redução na atividade. E quando a pessoa tem os dois genes mutantes (cada um em um cromossomo 12), a enzima não possui nada de atividade.
A mutação é absurdamente simples: houve uma substituição de um mísero aminoácido na posição 487 da enzima, saiu o glutamato e entrou a lisina. Na essência é aquela velha história, igual quando a gente pega uma receita: muda um ingrediente e tudo dá errado. Aqui é a mesma coisa.
É estimado que a condição está presente em cerca de 35-45% da população do leste asiático (chineses, japoneses, coreanos e taiwaneses).
Diagnóstico
Geralmente, para determinar este quadro é feito por uma anamnese do paciente. Para confirmar, existem exames de sangue para determinar o teor de acetaldeído e, tem teste álcool patch feito na pele que causa eritema (vermelhidão) local.
E não é só isso! O quê? Achou que tinha acabado? Não! Nada está ruim que não possa ser piorado.
Álcool Desidrogenase
Sabe a primeira enzima que começa o metabolismo do álcool, ADH? Então, existem variações dela que aumentam a sua atividade. Ou seja, ela consegue converter o álcool em acetaldeído com maior velocidade. Assim, o acúmulo de Acetaldeído acontece em menor tempo.
E em qual população essas variações são mais encontrada? Acertou quem disse: asiáticos do leste, chineses Han, japoneses, coreanos, filipinos e malaios.
Acetaldeído
Lembra que eu comentei que é tóxico? Esse decorrente da metabolização do álcool é classificado no Grupo 1 de Carcinogênicos pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, ligada à Organização Mundial de Saúde.
Grupo 1? O que isso significa? Você me pergunta, não é? Significa isso: existem evidências suficientes que a substância está relacionada em causar câncer. Neste caso, o principal é o câncer de esôfago, um dos mais mortais com uma taxa de sobrevivência variando entre 12% na Europa, 15% nos EUA e 31% no Japão.
Uma pausa para dar aquela morrida internamente.
E eu? O que faço?
Então, acho que deu para perceber que eu tenho essa condição, né? E trabalho com comida, e agora? É quase a mesma situação da intolerância à lactose: entre passar mal e não provar, o que a gente escolhe? Passar mal. Quer dizer, mais ou menos.
Se eu tenho a oportunidade de degustar alguma bebida que nunca tive acesso, é bem possível que irei experimentar. Mas é um gole ou como acontece em degustações de vinho: sinto o sabor, as notas e descarto. Não ingiro, de fato. O mal-estar causado é muito desagradável e não tem nada que amenize a situação.
Nas aulas de enologia era um certo sofrimento: vinhos bons e alguns super caros (que eu nunca vou comprar) para experimentar, e eu com esse detalhe. Só abri uma excessão na aula de champagne e espumantes, em que provei mais do que deveria.
Eu, como pessoa, não vou ao mercado para comprar bebidas alcoólicas para beber regularmente por prazer. É a última coisa que irá me proporcionar é prazer, devido ao desconforto gerado. Sinto falta? Sinceramente, não. Porém, eu sei que esta parte de bebidas alcoólicas na minha formação como cozinheiro não é das melhores por não poder construir uma memória gustativa-olfativa que só é possível experimentando.
Muito Longo; Não Li
- Não é alergia. Estamos combinados?
- É uma deficiência numa enzima chamada Aldeído Desidrogenase 2.
- A enzima sofreu uma mutação e ficou inativa.
- Cerca de 35-50% da população do leste asiático possui essa mutação.
- Ela é necessária na metabolização do álcool, mas como não funciona direito uma substância tóxica chamada Acetaldeído fica mais tempo no corpo.
- O que causa os sintomas: vermelhidão facial e corporal, dor de cabeça, náuseas, vômito, taquicardia e mal-estar generalizado.
- É uma ressaca que acontece na mesma hora do consumo do álcool.
- Este acetaldeído produzido na metabolização do álcool está associado com casos de câncer, principalmente do esôfago.
- Não tem cura necessariamente, alguns experimentos foram feitos, mas nada está disponível para alterar a condição.
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Encontrei alguém igual a mim! No meu caso é totalmente inativa, descobri entrando em coma com uma dose de vodka, tenso…rsrs
Muito interessante! Obrigada pelo texto!